DA LITERATURA PARA MÚSICA
Era tarde da noite em Vila Viçosa, no Alentejo, Portugal. Uma jovem estava nos seus aposentos. Uma lamparina iluminava o quarto. Sobre uma mesinha, havia alguns cadernos e livros. A garota estava sentada numa cadeira próximo à mesa segurando uma caneta. Embora o fascínio pela eletricidade continuasse a crescer e, no final do século XIX e início do século XX, surgisse as primeiras empresas de produção e distribuição de energia elétrica, Florbela preferia a luz de lamparina enquanto escrevia seus belíssimos sonetos.
Entre nove e dez anos começou a produzir suas primeiras composições poéticas. Escreveu o poema "A Vida e a Morte", o soneto em redondilha maior em homenagem ao irmão Apeles e um poema "No dia d'anos", escrito para o aniversário do pai, com a seguinte dedicatória: “Ofereço estes versos ao meu querido papá da minha alma”. Nessa noite, a jovem Alentejana, escrevia um soneto marcado pelo sentimentalismo íntimo. Intitulado “Fanatismo”, o soneto tornar-se-ia uma das várias obras-primas da poesia Alentejana.
Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver.
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida.
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!...
Tudo no mundo é frágil, tudo passa.
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E olhos postos em ti, digo de rastros:
Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!...
Após terminar a escrita do poema, que atravessaria todas as fronteiras da literatura e se tornaria atemporal, Florbela foi descansar.
Anos depois, nascia em Orós (CE), um jovem apaixonado pelos instrumentos musicais. Futuramente, esse garoto tornar-se-ia uma das vozes marcantes da música brasileira. “Seu” José e Dona Francisca batizaram o filho de Raimundo Fagner Cândido Lopes, chamando carinhosamente de Fagner.
Certa noite, a curiosidade e o gosto pela leitura, além de sua paixão pela poesia; levaram o menino Fagner a leitura de grandes obras literárias. Entre elas, destaca-se os sonetos da Flor Alentejana, de origem portuguesa. Em uma madrugada de 1981, aos 32 anos, o músico e cantor cearense, enquanto lia o soneto “Fanatismo” começou a dedilhar seu violão correndo os olhos pelas palavras cheias de sentimentalismo e transformou um dos melhores sonetos da língua portuguesa em uma das magníficas canções da música popular brasileira. E assim, “Fanatismo” passou da ótica literária da Flor Alentejana para a interpretação musical na voz inconfundível do cearense, filho de Orós.
MORAIS, José Roberto. Florbela, Fagner e Fanatismo: o sentimentalismo da flor alentejana na voz inconfundível do cearense de Orós. In Revista Sarau. v.5 nº12. janeiro/fevereiro 2025. (p.53-54) ISSN 2965.6192