domingo, 8 de setembro de 2019

O BOI ZEBU E AS FORMIGAS: UMA METÁFORA¹


José Roberto Morais²
“O boi zebu qué dizê
Que é os mandão do podê
E estas formiga é o povo.”
(Patativa do Assaré)

            Para compreendermos uma das finalidades do poema “O Boi Zebu e As Formigas” se faz necessário a leitura completa do mesmo, pois o poeta revela sua intenção apenas nos versos finais. Porém, o título do poema é sugestivo, funcionando como uma metáfora para a compreensão de seu objetivo.
            Nele os políticos são representados pelo boi zebu, já que esse animal possui características semelhantes às agregadas por Patativa do Assaré aos mesmos. O poeta faz um trabalho de personificação com o zebu, quando o presenteia com características humanas, que no poema em questão o fazem ser relacionados aos homens públicos, dentre essas características podemos citar: sua grandeza (relacionada ao tamanho) e força, o que os torna invencíveis, sua indiferença ao que acontece ao seu redor, sua preguiça e comodismo.
            Trabalho semelhante o poeta faz com as formigas, que representam o povo, dentre as características humanas que podemos citar e que as aproximam da classe que representam no poema são: seu tamanho (pequeno e insignificante comparado ao boi zebu); seu método de trabalho, constante e organizado, no qual todos respeitam as ordens hierárquicas, ocasionando a manutenção do sistema em vigor; a divisão e o período do trabalho, nos quais durante determinada temporada se organizam e trabalham para que no inverno usufruam do resultado do mesmo; a união, já que como cada uma tem consciência de sua função no contexto do formigueiro as mesmas não brigam, nem mesmo se desentendem.
            Escrito numa linguagem totalmente popular, as décimas que compõem o poema revelam a preocupação do poeta com sua classe social. O poema é composto por nove décimas (estrofes de dez versos) que retratam a situação enfrentada pelas classes inferiores. Observando a primeira estrofe, percebe-se nas entrelinhas a situação desafiadora que os párias (as classes trabalhadoras) enfrentam e a tranquilidade e indiferença dos políticos que ocupam o topo da pirâmide social. A ideia mencionada fica explícita no percurso da estrofe.

Um boi zebu certa vez
Moiadinho de suó
Querem sabê o que ele fez
                                             Temendo o calor do só
Entendeu de demorá
E uns minutos cuchilá
Na sombra de um juazêro
Que havia dentro da mata
E firmou as quatro pata
                                             Em riba de um formiguêro.

            Nessa estrofe os políticos são retratados como “grandes” ou superiores, os versos narram sua preguiça e comodismo. Patativa do Assaré denuncia sua incompetência em gerir os recursos públicos, anunciando que os mesmos “sobem” no povo, representados pelas formigas, por serem pequenas e trabalhadoras, os zebus se promovem e garantem a manutenção de sua desocupação sobre essas pequenas formigas.
            Já na segunda estrofe, o poeta cita o provérbio “a união faz a força” de forma implícita, induzindo os leitores a refletir acerca da organização e união do povo para vencer os obstáculos e problemas sociais que se colocam a sua frente, a união de todos seria a arma exata, pois, “juntos e unidos, os povos jamais serão vencidos” (provérbio popular).

Já se sabe que a formiga
Cumpre sua obrigação
Uma com outra não briga
Veve em perfeita união
Paciente trabaiando
                                             Suas fôia carregando
Um grande inzempro revela
                                             Naquele seu vai e vem
                                             E não mexe com ninguém
                                             Sem ninguém mexê com ela.

            O trabalho organizado das formigas funciona como um exemplo que o poeta nos quer passar, ele chama a atenção para a sua organização e divisão eficiente, promovendo assim a união e o caráter inofensivo das formigas também é demarcado, porém, Patativa nos chama a atenção para o fato de que essa parcialidade pode ser comprometida se sua organização for ameaçada, o que nos remete a reação combativa do povo frente a absurdos que lhes são impostos.
            Essa revolta se concretiza de forma sutil na terceira estrofe, culminando em uma rebelião, inicialmente silenciosa. A ideia de manifestação é assim descrita pelo poeta:

Por isto com a chegada
Daquele grande animá
Todas ficaro zangada
Começaro a se açanhar
E foro se reunindo
Nas pernas do boi subindo
Constantemente a subir
Mas tão devagar andava
                                             Que no começo não dava
Pra ele nada senti.

            Na quarta estrofe, o poeta relata a disseminação da rebelião, que se espalha por todos os cantos, já que as formigas estão em todos os lugares e possuem as mesmas características, inclusive a inconformidade ao serem prejudicadas, não importando o tamanho e a importância de quem as incomoda. Essa luta por direitos ganha repercussão nacional e resistência, pois nessa empreitada, quando os donos do poder (boi) reagem de forma raivosa, dando coices contra as formigas (povo), na tentativa desesperada de amedronta-las, aparecem mais “formigas” para fortalecer a causa. Essa passagem é narrada da seguinte forma:

Mas porém como a formiga
Em todo canto se soca
Dos cascos até na barriga
                                             Começou a frivioca            
E no corpo se espaiando
O zebu foi se zangando
E os cascos no chão batia
Mas porém não miorava
Quanto mais coice ele dava
Mais formiga aparecia.

            Na quinta estrofe, o poeta narra o desespero do político ao deparar-se com a manifestação organizada do povo, que agora fazia capaz de superar seu poder e seu controle. O político usa suas estratégias de defesa e ordem, mas elas falham, pois a cada investida sua, suas forças diminuem e a forma da população aumenta. As manifestações continuam e a cada momento aparecem mais pessoas que se unem em busca dos seus direitos. A estrofe mencionada fala:

Com esta formigaria
Tudo picando sem dó
O lombo do boi ardia
Mais do que na luz do só
E ele zangado as patada,
Mais a força incorporada
O valentão não aguenta,
O zebu não tava bem
Quando ele matava cem
Chegava mais de quinhenta.
               
            Na sexta estrofe, uma voz de liderança surge e convoca todos os injustiçados a se unirem no combate, essa voz usa o argumento da união para embasar seu clamor, enfatizando que o zebu é um só, portanto, sua força e poder foi alquebrado. Essa passagem reflete o aspecto visionário e engajado de Patativa, que sempre acreditou e defendeu em sua obra, a força popular como capaz de sanar todas as desigualdades e colocar novamente ordem ao caos vivido no contexto do autor, portanto, essa passagem se caracteriza como crítica política do poeta ao sistema político em vigor nas palavras de Patativa.

Com a feição de guerrêra
                                             Uma formiga animada
Gritou para as companhêra:
- Vamo minhas camarada
Acabá com o capricho
Deste ignorante bicho
Com nossa força comum
Defendendo o formiguêro
Nóis somo munto miêro
E este zebu é só um.
                       
            Ainda analisando essa estrofe, percebemos que o convite feito pela formiga líder permite a interação com as demais. É por meio da sua fala que o poeta se coloca e interage com o público. Percebe-se a aplicação da ideia de Lucien Goldmann (1967) acerca das estruturas cognitivas aplicadas às relações entre o autor e o grupo social, mesmo conceito que Antônio Cândido mencionou em sua obra como as relações entre escritor e público. Esse poema de Patativa pode ser visto e analisado por esse ângulo, pois nos versos que compõem essa estrofe, percebe-se claramente esse diálogo entre o poeta e a sociedade, comprovado através do uso do verbo “vamo”, na primeira pessoa do plural, refletindo a ideia de coletividade.
            Quando acontecem manifestações políticas na sociedade, costuma-se lotar as ruas de pessoas; crianças, jovens, adultos, idosos, deficientes, reivindicando seus direitos. As pessoas param o trânsito das grandes cidades buscando atingir seus objetivos, geralmente ligados a uma sociedade com menos diferenças sociais. Patativa expõe esses fatos na sétima estrofe do poema, sempre usando as metáforas; formiga=povo e zebu=políticos (mandão do podê). Patativa cita até mesmo as etnias diferentes que se misturam e formam o nosso povo que luta unido pelo direito de todos.
           
                                             Tanta formiga chegô
Que a terra ficou cheia
Formiga de toda cô
Preta, amarela e vremêa
No boi zebu se espaiando
Cutucando e pinicando
Aqui e ali tinha um móio
E ele com grande fadiga
Pruquê já tinha formiga
Até por dentro dos óio.

            Como era de se esperar, a união das formigas consegue vencer os desmandos do zebu, representado o povo que conquista a garantia de seus direitos, vislumbrando o conserto do desmantelamento da estrutura social a que pertence. A derrota desses políticos corruptos está representada assim no poema:

Com o lombo todo ardendo
Daquele grande aperreio
O zebu saiu correndo
Fungando e berrando feio
                                             E as formigas inocente
Mostraro pra toda gente
Esta lição de morá
Contra a farta de respeito
                                             Cada um tem seu direito
Até nas leis naturá.

            Na nona e última estrofe, o poeta revela sua real intenção, esclarecendo as metáforas usadas para representar os políticos e o povo, narrando também as conquistas garantidas pela luta empreendida pelo povo oprimido, como a defesa de seus lares e comunidades. Por fim, Patativa ainda relembra novamente a importância da união no combate às injustiças.

As formigas a defendê
Sua casa, o formiguêro
Botando o boi pra corrê
Da sombra do juazêro
Mostraro nesta lição
Quanto pode a união;
Neste meu poema novo
O boi zebu qué dizê
Que é os mandão do podê
E estas formiga é o povo.
           
            Percebe-se ao longo do poema que o poeta é vítima do sistema social sucateado e ineficaz que o cerca, por isso Patativa do Assaré faz uso da arma, a palavra, que possui para modificar essa realidade. As palavras do poeta é o canto do “pássaro liberto” que torna sua obra relevante no contexto social e na literatura engajada.

NOTAS

1.      Capítulo 4 do livro “Reforma Agrária e o Boi Zebu e as Formigas: uma análise sociológica” do professor José Roberto Morais.
2.      Professor. Graduado em Letras pela Universidade Regional do Cariri – URCA.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e Fulô. São Paulo: Hedra, 2005.
BRITO, Antônio Iraildo Alves de. Patativa do Assaré: Porta Voz de um Povo: as marcas do sagrado em sua obra. São Paulo: Paulus, 2010.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré: Pássaro Liberto. Publicado pelo Museu do Ceará. Fortaleza, 2002.
SILVA, José Roberto de Morais. Reforma Agrária” e “O Boi Zebu e as Formigas”:  uma análise sociológica. José Roberto de Morais Silva. Pará de Minas, MG: Virtualbooks, Editora, Publicação 2017, pp. 45-53.

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