José
Roberto Morais²
“O
boi zebu qué dizê
Que
é os mandão do podê
E
estas formiga é o povo.”
(Patativa
do Assaré)
Para compreendermos uma das
finalidades do poema “O Boi Zebu e As Formigas” se faz necessário a
leitura completa do mesmo, pois o poeta revela sua intenção apenas nos versos
finais. Porém, o título do poema é sugestivo, funcionando como uma metáfora
para a compreensão de seu objetivo.
Nele os políticos são representados
pelo boi zebu, já que esse animal possui características semelhantes às
agregadas por Patativa do Assaré aos mesmos. O poeta faz um trabalho de
personificação com o zebu, quando o presenteia com características humanas, que
no poema em questão o fazem ser relacionados aos homens públicos, dentre essas
características podemos citar: sua grandeza (relacionada ao tamanho) e força, o
que os torna invencíveis, sua indiferença ao que acontece ao seu redor, sua
preguiça e comodismo.
Trabalho semelhante o poeta faz com
as formigas, que representam o povo, dentre as características humanas que
podemos citar e que as aproximam da classe que representam no poema são: seu
tamanho (pequeno e insignificante comparado ao boi zebu); seu método de
trabalho, constante e organizado, no qual todos respeitam as ordens
hierárquicas, ocasionando a manutenção do sistema em vigor; a divisão e o
período do trabalho, nos quais durante determinada temporada se organizam e
trabalham para que no inverno usufruam do resultado do mesmo; a união, já que
como cada uma tem consciência de sua função no contexto do formigueiro as
mesmas não brigam, nem mesmo se desentendem.
Escrito numa linguagem totalmente
popular, as décimas que compõem o poema revelam a preocupação do poeta com sua
classe social. O poema é composto por nove décimas (estrofes de dez versos) que
retratam a situação enfrentada pelas classes inferiores. Observando a primeira
estrofe, percebe-se nas entrelinhas a situação desafiadora que os párias (as
classes trabalhadoras) enfrentam e a tranquilidade e indiferença dos políticos
que ocupam o topo da pirâmide social. A ideia mencionada fica explícita no
percurso da estrofe.
Um boi zebu
certa vez
Moiadinho de suó
Querem sabê o
que ele fez
Temendo o calor do só
Entendeu de
demorá
E uns minutos
cuchilá
Na sombra de um
juazêro
Que havia dentro
da mata
E firmou as
quatro pata
Em riba de um formiguêro.
Nessa estrofe os políticos são
retratados como “grandes” ou superiores, os versos narram sua preguiça e
comodismo. Patativa do Assaré denuncia sua incompetência em gerir os recursos
públicos, anunciando que os mesmos “sobem” no povo, representados pelas
formigas, por serem pequenas e trabalhadoras, os zebus se promovem e garantem a
manutenção de sua desocupação sobre essas pequenas formigas.
Já na segunda estrofe, o poeta cita
o provérbio “a união faz a força” de forma implícita, induzindo os leitores a
refletir acerca da organização e união do povo para vencer os obstáculos e
problemas sociais que se colocam a sua frente, a união de todos seria a arma
exata, pois, “juntos e unidos, os povos jamais serão vencidos” (provérbio
popular).
Já se sabe que a
formiga
Cumpre sua
obrigação
Uma com outra
não briga
Veve em perfeita
união
Paciente
trabaiando
Suas fôia carregando
Um grande
inzempro revela
Naquele seu vai
e vem
E
não mexe com ninguém
Sem ninguém mexê com ela.
O trabalho organizado das formigas
funciona como um exemplo que o poeta nos quer passar, ele chama a atenção para
a sua organização e divisão eficiente, promovendo assim a união e o caráter
inofensivo das formigas também é demarcado, porém, Patativa nos chama a atenção
para o fato de que essa parcialidade pode ser comprometida se sua organização
for ameaçada, o que nos remete a reação combativa do povo frente a absurdos que
lhes são impostos.
Essa revolta se concretiza de forma
sutil na terceira estrofe, culminando em uma rebelião, inicialmente silenciosa.
A ideia de manifestação é assim descrita pelo poeta:
Por isto com a
chegada
Daquele grande
animá
Todas ficaro
zangada
Começaro a se
açanhar
E foro se
reunindo
Nas pernas do
boi subindo
Constantemente a
subir
Mas tão devagar
andava
Que no começo não dava
Pra ele nada
senti.
Na quarta estrofe, o poeta relata a
disseminação da rebelião, que se espalha por todos os cantos, já que as
formigas estão em todos os lugares e possuem as mesmas características,
inclusive a inconformidade ao serem prejudicadas, não importando o tamanho e a
importância de quem as incomoda. Essa luta por direitos ganha repercussão
nacional e resistência, pois nessa empreitada, quando os donos do poder (boi)
reagem de forma raivosa, dando coices contra as formigas (povo), na tentativa
desesperada de amedronta-las, aparecem mais “formigas” para fortalecer a causa.
Essa passagem é narrada da seguinte forma:
Mas porém como a
formiga
Em todo canto se
soca
Dos cascos até
na barriga
Começou a frivioca
E no corpo se
espaiando
O zebu foi se
zangando
E os cascos no
chão batia
Mas porém não
miorava
Quanto mais
coice ele dava
Mais formiga
aparecia.
Na quinta estrofe, o poeta narra o
desespero do político ao deparar-se com a manifestação organizada do povo, que
agora fazia capaz de superar seu poder e seu controle. O político usa suas
estratégias de defesa e ordem, mas elas falham, pois a cada investida sua, suas
forças diminuem e a forma da população aumenta. As manifestações continuam e a
cada momento aparecem mais pessoas que se unem em busca dos seus direitos. A
estrofe mencionada fala:
Com esta
formigaria
Tudo picando sem
dó
O lombo do boi
ardia
Mais do que na
luz do só
E ele zangado as
patada,
Mais a força
incorporada
O valentão não
aguenta,
O zebu não tava
bem
Quando ele
matava cem
Chegava mais de
quinhenta.
Na sexta estrofe, uma voz de
liderança surge e convoca todos os injustiçados a se unirem no combate, essa
voz usa o argumento da união para embasar seu clamor, enfatizando que o zebu é
um só, portanto, sua força e poder foi alquebrado. Essa passagem reflete o
aspecto visionário e engajado de Patativa, que sempre acreditou e defendeu em
sua obra, a força popular como capaz de sanar todas as desigualdades e colocar
novamente ordem ao caos vivido no contexto do autor, portanto, essa passagem se
caracteriza como crítica política do poeta ao sistema político em vigor nas
palavras de Patativa.
Com a feição de
guerrêra
Uma formiga animada
Gritou para as
companhêra:
- Vamo minhas
camarada
Acabá com o
capricho
Deste ignorante
bicho
Com nossa força
comum
Defendendo o
formiguêro
Nóis somo munto
miêro
E este zebu é só
um.
Ainda analisando essa estrofe,
percebemos que o convite feito pela formiga líder permite a interação com as
demais. É por meio da sua fala que o poeta se coloca e interage com o público.
Percebe-se a aplicação da ideia de Lucien Goldmann (1967) acerca das estruturas
cognitivas aplicadas às relações entre o autor e o grupo social, mesmo conceito
que Antônio Cândido mencionou em sua obra como as relações entre escritor e
público. Esse poema de Patativa pode ser visto e analisado por esse ângulo,
pois nos versos que compõem essa estrofe, percebe-se claramente esse diálogo
entre o poeta e a sociedade, comprovado através do uso do verbo “vamo”, na
primeira pessoa do plural, refletindo a ideia de coletividade.
Quando acontecem manifestações
políticas na sociedade, costuma-se lotar as ruas de pessoas; crianças, jovens,
adultos, idosos, deficientes, reivindicando seus direitos. As pessoas param o
trânsito das grandes cidades buscando atingir seus objetivos, geralmente
ligados a uma sociedade com menos diferenças sociais. Patativa expõe esses
fatos na sétima estrofe do poema, sempre usando as metáforas; formiga=povo e
zebu=políticos (mandão do podê). Patativa cita até mesmo as etnias diferentes
que se misturam e formam o nosso povo que luta unido pelo direito de todos.
Tanta formiga chegô
Que a terra
ficou cheia
Formiga de toda
cô
Preta, amarela e
vremêa
No boi zebu se
espaiando
Cutucando e
pinicando
Aqui e ali tinha
um móio
E ele com grande
fadiga
Pruquê já tinha
formiga
Até por dentro
dos óio.
Como era de se esperar, a união das
formigas consegue vencer os desmandos do zebu, representado o povo que
conquista a garantia de seus direitos, vislumbrando o conserto do
desmantelamento da estrutura social a que pertence. A derrota desses políticos
corruptos está representada assim no poema:
Com o lombo todo
ardendo
Daquele grande
aperreio
O zebu saiu
correndo
Fungando e
berrando feio
E
as formigas inocente
Mostraro pra
toda gente
Esta lição de
morá
Contra a farta
de respeito
Cada um tem seu direito
Até nas leis
naturá.
Na nona e última estrofe, o poeta
revela sua real intenção, esclarecendo as metáforas usadas para representar os
políticos e o povo, narrando também as conquistas garantidas pela luta
empreendida pelo povo oprimido, como a defesa de seus lares e comunidades. Por
fim, Patativa ainda relembra novamente a importância da união no combate às
injustiças.
As formigas a
defendê
Sua casa, o
formiguêro
Botando o boi
pra corrê
Da sombra do
juazêro
Mostraro nesta
lição
Quanto pode a
união;
Neste meu poema
novo
O boi zebu qué
dizê
Que é os mandão
do podê
E estas formiga
é o povo.
Percebe-se ao longo do poema que o poeta
é vítima do sistema social sucateado e ineficaz que o cerca, por isso Patativa
do Assaré faz uso da arma, a palavra, que possui para modificar essa realidade.
As palavras do poeta é o canto do “pássaro liberto” que torna sua obra
relevante no contexto social e na literatura engajada.
NOTAS
1.
Capítulo
4 do livro “Reforma Agrária e o Boi Zebu e as Formigas: uma análise sociológica”
do professor José Roberto Morais.
2.
Professor.
Graduado em Letras pela Universidade Regional do Cariri – URCA.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSARÉ,
Patativa do. Ispinho e Fulô. São Paulo: Hedra, 2005.
BRITO,
Antônio Iraildo Alves de. Patativa do Assaré: Porta Voz
de um Povo: as marcas do sagrado em sua obra. São Paulo: Paulus, 2010.
CÂNDIDO,
Antônio. Literatura e Sociedade. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2010.
CARVALHO,
Gilmar de. Patativa do Assaré: Pássaro Liberto. Publicado pelo
Museu do Ceará. Fortaleza, 2002.
SILVA, José Roberto de Morais. “Reforma
Agrária” e “O Boi Zebu e as Formigas”: uma análise sociológica. José Roberto de Morais Silva. Pará de Minas, MG: Virtualbooks, Editora, Publicação 2017, pp.
45-53.
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